Décimo álbum da digna discografia de Cida Moreira, Soledade é disco aguardado com
grande expectativa pelo seleto público da cantora paulistana, dama dos cabarés
mais marginais. Afinal, trata-se do primeiro álbum da intérprete desde A dama indigna (Joia Moderna, 2011),
trabalho que revitalizou a carreira (e a agenda) da artista.
Batizado com o nome de cidade encravada no sertão da
Paraíba, Soledade transita por
trilhas de um Brasil ilógico em rota que vai da modinha ao rock. "Havia manhãs e
havia quintais naquele tempo", lembra Cida na abertura do disco, antes
de começar a destilar a melancolia poética embutida em Viola quebrada (Maroca), tema de 1928 da lavra musical do poeta
paulistano Mário de Andrade (1893 - 1945). Cida canta a modinha sertaneja com o
toque virtuoso da viola de Paulo Freire. Sem a preocupação de ser moderna, a
cantora se eterniza ao dar voz grave – já com menor extensão na escala musical,
mas com alcance cada vez maior do sentido dos versos que interpreta – a canções
que parece recolher no ar. Como Moreninha,
tema de domínio público ambientado em clima de seresta ruralista no arranjo do
violonista Omar Campos, diretor musical – em função dividida com a própria Cida
– deste álbum concebido pela cantora com o jornalista Eduardo Magossi.
Soledade tem tom
predominantemente caipira nesse trilho inicial em que Cida também pega no ar de
um Brasil de tempos idos uma esquecida canção assinada por Nana Caymmi com
Gilberto Gil, Bom dia, de 1967. Com
os toques da viola de Omar Campos e do acordeom de Mestrinho, Cida louva em tom
interiorano o alvorecer e o trabalho. Mas sombras também podem encobrir o raiar
do sol e a existência humana, como lembra Um
gosto de sol (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, 1972), música na qual a
cantora embute trecho de outra parceria de Milton com Bastos, Trastevere (1975). A interpretação
maturada de Um gosto de sol – com a
exposição de todas as intenções dos versos de Bastos – exemplifica a grandeza
do canto atual de Cida. "Que importa
o sentido, se tudo vibra?", questiona a intérprete no poema-vinheta de
Alice Ruiz inserido no disco após Forasteiro
(Thiago Pethit e Hélio Flanders, 2010), a angustiada balada folk contemporânea do repertório do
cantautor Thiago Pethit que ganha maior dimensão no tom preciso do canto de
Cida, em arranjo no qual sobressai a guitarra de Faiska Borges. Detalhe: na
gravação ao vivo de Forasteiro,
lançada em clipe, ouve-se somente a voz e o piano de Cida, o que realça a
precisão da interpretação da artista. Pois, quase sempre, basta um piano para
essa saloon singer nativa mostrar
todo o poder de sedução de seu canto lapidado nos palcos e salões. É somente
com um piano – o de Lincoln Antonio – que Cida desfolha o Poema da rosa (Jards Macalé e Augusto Boal, 1970, a partir de poema
de Bertolt Brecht), instante menos vibrante de Soledade porque os versos acalentadores do poema soam mais fortes
do que a música que lhe foi posta.
Em clima de cabaré, Oitava
cor (Luis Felipe Gama e Tiago Torres da Silva) também brilha com menor
intensidade no arco-íris de Soledade
pelo mesmo motivo. Introduzida pela voz grave do cantor paraense Arthur
Nogueira, a vinheta Preciso cantar (2013) reproduz trecho de tema composto por
Nogueira com o poeta Dand M (não creditado no encarte, na primeira tiragem do
disco), abrindo caminho para a trilha mais contemporânea e roqueira seguida por
Soledade em sua rota final. Música
levada pelo piano autossuficiente de Cida, Feito
um picolé ao sol (Nico Nicolaiewski, 1985) reconduz a dama do cabaré e o
disco à sua melhor forma, reconectando Cida ao viés marginal que pauta seu
canto desde os anos 1970.
No mesmo clima de cabaré, a dama afia os agudos da voz para
retratar a cortante Outra cena (1976)
exposta por Taiguara (1945 - 1996) há quase 40 anos para denunciar o lado podre
do sertão e do Brasil. Na sequência, Soledade
atinge ponto alto de vibração com o arranjo demolidor de Construção (Chico Buarque, 1971), criado por Arthur de Faria com
cordas que evocam o passo passional do tango. Com pausas estratégicas, o canto
de Cida evidencia a tensão que pauta os últimos momentos da personagem épica da
canção de Chico.
No mesmo patamar alto, A
última voz do Brasil (Tico Terpins, Zé Rodrix, Armando Ferrante Jr. e
Próspero Albanese, 1985) – música do grupo paulista Joelho de Porco – ecoa o
barulho do rock para destilar finas
ironias sobre o país da barriga vazia e dos Carnavais dos hospitais. Com coro e
guitarras (de Faiska Borges e Omar Campos), A
última voz do Brasil repõe em cena a atriz, a dama indigna, com direito à
breve citação do Hino Nacional Brasileiro (Francisco Manoel da Silva e Osório
Duque Estrada, 1822) ao fim do arranjo. O Brasil está na U.T.I., mas o pulso
ainda pulsa, como lembra Cida na arrasadora releitura de O pulso (Arnaldo Antunes, Marcelo Frommer e Tony Bellotto, 1989).
Com sagaz citação de A queda (André
Frateschi, 2014), o rock do grupo
Titãs tem seus versos recitados por Cida em arranjo nervoso e ruidoso,
formatado com a eletrônica dos teclados de Ricardo Severo. Mas a marcha As pastorinhas (Noel Rosa e João de
Barro, 1934) – alocada como vinheta no fecho de Soledade – sinaliza que, mesmo com as misérias humanas e sociais, o
Brasil ainda é capaz de fazer o seu Carnaval. Enfim, (quase) tudo vibra no
sentido dado por Cida Moreira a Soledade,
grande disco dessa dama capaz de pegar canções pelo ar para dar nova dimensão a
elas com seu canto maturado, orgulhosamente marginal.
(Texto de Mauro Ferreira).